quinta-feira, 8 de abril de 2010

SEKTOR 304: A LIBERTAÇÃO FERRUGENTA OU O GRITO PRIMEVO

Texto escrito a propósito do concerto de Sektor 304 no Maus Hábitos no passado dia 25 de Março, integrado na série Explotation, organizada pelo colectivo Soopa e pela Lovers & Lollipops. Além dos Sektor 304 tocou também Most people have been trained to be bored, projecto do multi-instrumentista e compositor Gustavo Costa.

A premissa base do texto refere-se à ideia da música industrial como exacerbação da alienação moderna do homem, que por negação conduz a um estado de emoções básicas próximas ao do homem primitivo. Esta associação deriva da relação entre as linguagens estéticas da música industrial e do movimento do “moderno primitivismo”; apesar dos SKT304 não terem uma clara relação com esse movimento, a experiência subjectiva do concerto deles, nomeadamente através das emoções e estados de espírito que me foram induzindo, para lá me encaminharam.




O homem oprimido pelas máquinas modernas grita, urra. O homem criou um mundo que lhe é estranho, hostil, feito de circuitos, betão, metal, microchips e radiações invisíveis, em que o orgânico e o biológico surgem como anomalias de imperfeição. Um mundo que aos poucos vai eliminando o que é natural para impor a ordem cibernética, para a qual o homem terá que transmutar a sua própria essência, se quiser sobreviver neste mundo que foi criando, julgando construir um mundo melhor, uma realidade que o aliena, exclui, expropria das suas características orgânico-psicológicas, fruto de milhões de evolução em contextos “naturais”. O tema da alienação do homem pela revolução industrial não é novo; mas parece-me estarmos no limiar [estamos sempre no limiar de qualquer coisa não é?!] de uma forma diferente de alienação, baseada na virtualidade (ou irrealidade) da nossa realidade, na multiplicidade de possibilidades (que levam a uma relativização porventura excessiva de valores e princípios) de padrões de comportamento contrabalançada com uma crescente tendência para a regulamentação de todos os comportamentos humanos. Refiro-me apenas, e de forma vaga, a aspectos que acrescem a essa alienação gerada pela Revolução Industrial e todo o progressivo afastamento do homem do que é orgânico para a urbanidade.


Os Sektor 304 levam a alienação ao seu extremo, procurando (provavelmente sem essa intenção explícita) o primitivo que existe no homem a partir dos elementos básicos que constituem a sua alienação neste mundo hiper-moderno** - o metal, o ruído, a repetitividade. Mas a determinado momento esta exacerbação dos elementos que alienam induzem uma operação de inversão [1 passa a -1], uma negação desse mesmo processo de alienação, em que o grito já não é de revolta ou em forma de palavra, em que a batida já não é o funcionar preciso da máquina. Através deste exercício de negação ou reflexão invertida, o que há de mais primitivo no homem alienado emerge, inunda os sentidos, impregna o sentir, e os gritos ouvidos são os do homem perdido na noite, e o bater dos tambores é a expressão do homem que sente intensamente o mundo que o rodeia, já não anestesiado pela modorra da rotina cinzenta mas vibrante, vivo, possante; ainda que alienado na mesma [a inversão tem mais a ver com o contexto do que com o tom da situação; aliás, a inversão dá-se através desse tom, dessa emoção que projecta o “Eu” para um contexto mental mais arcaico]. Voodoo Machine é a perfeita encarnação desse processo: depois de uma secção de ruído abstracto, baseado em sons acústicos (chapas e sons metálicos processados) a batida torna-se ominosa, encharca o ambiente de energia primitiva (porque alheia à consciência) - não só pela batida mas pela forma como ela é executada, como se não existisse amanhã ou forma de sair daquele momento sem ser pelo suor, pela exaustão. Pensei, algo emocionado confesso, "ver Swans em 1983 devia ser assim" :)


A música dos SKT304 ao vivo é um exercício de tensão – não só pelos sons usados mas uma tensão mais profunda, entre o urbano/moderno e o primitivo/visceral, numa lógica (ou estética) de alienação metódica e propositada. O palco parece uma oficina descuidada, com chapas metálicas, bidons, ferros, máquinas… Também tem a parafernália de microchips, circuitos electrónicos que marcam a presente modernidade, na forma do portátil e dos pedais de efeitos. E o ponto de partida é esse exercício de alienação sonora, com o uso de sons abrasivos e ritmos repetitivos, pautados pelo contrabaixo amplificado (e distorcido nalguns temas). Os temas sucedem-se sem conseguirmos saber qual o ponto de destino ou as intenções destes três monstrinhos que se agitam no palco – o concerto acaba e termina no mesmo tom. Todos os temas parecem variações sobre a mesma emoção de alienação, macerada, batida, torturada (e tortuosa), repetida até à exaustão física e emocional; a raiva repetida até à exaustão desagua na angústia! A voz gutural e gritada de A. Coelho é praticamente ininteligível (pessoalmente, e tirando algumas palavras isoladas, só percebi “death mantra” no tema-homónimo), a comunicação com o público não existe, os três parecem estar completamente imersos, prisioneiros, alienados deles mesmos e do que os rodeia. Tudo aliena, tudo é áspero e angustiante. A tensão é constante ao longo dos temas, sejam momentos mais selvagens e percussivos, sejam massagens auditivas de sons tirados das chapas, berbequins, chapas, arcos, instrumentos estranhos ou correntes dentro de bidons, por vezes combinando ambas as soluções mas sempre dentro da lógica da repetitividade e da estética do exagero.


Estas podem evidentemente assumir um carácter de caricatura para quem vê aqueles três homens perdidos nas suas deambulações sonoras abrasivas, pela mesma lógica da exacerbação/negação, algo a que não é estranho o trabalho dos membros do projecto, envolvidos com várias formas de caricatura/subversão de linguagens musicais de sub-culturas necessariamente extremistas [por exemplo Cabidela/blackmetal Legião de Sta Comba Dão/power electronics]. Mas adiante. O que é excessivo e repetitivo (ou se torna excessivo pela repetição dos mesmos elementos) geralmente leva a uma resposta mais ou menos absoluta: ou aborrece ou absorve, não parecendo haver um meio termo para “apreciar” esta entidade maquinal de um ponto de vista mais ou menos “seguro” da racionalidade. E ser absorvido por esta máquina de alienação é ser-se catapultado para um estado de primitivismo visceral decorrente dessa mesma alienação, e sem grande possibilidade de reflectir esse estado: ou o nosso corpo é inundado de hormonas e assume um estado bio-químico-emocional visceral… Ou não.

Penso com alguma diversão em como o imaginário africano, como a face branca (reproduzida no início do texto) que nos fita quando abrimos “Soul cleansing” [o primeiro CD de SKT304, editado pela Americana Malignant Records, depois de dois CDRs auto-editados] faz todo o sentido. Partimos do presente para um passado fantástico. Usamos as ferramentas da modernidade (em sentido figurado e literal) para alcançar o nosso lado primitivo, que está e esteve sempre lá, acomodando-se à evolução, adaptando-se ao progresso humano, mas sempre lá, expectante e poderoso. E ao limparmos a alma é esse negro de face branca que encontramos dentro de nós, o primitivo irredutível que nos liga ao visceral, ao animal, ao mundo natural e orgânico.



Ficha técnica do concerto:

A. Coelho – Electrónica, manipulação sonora, voz, chapas metálicas, trombeta, reverbadeira.

João Filipe – Percussão, berbequim, chapa metálica.

Henrique Fernandes – Contrabaixo, correntes.

Gustavo Costa – Bateria em “Vultures”.



Alinhamento:

01 A Carving on Metal Skin

02 Body Hammer

03 Voodoo Machine

04 Full Circle

05 Key to the Abyss

06 Power Exchange

07 Dissolution

08 Death Mantra

09 Vultures

** Hiper-realidade: Termo inventado para me referir a uma mistura caótica de elementos que define actualmente a nossa realidade sócio-histórico-cultural, elementos originários de uma lógica modernista e pós-modernista incrustados numa vivência da realidade cada vez mais marcada pela irrealidade e virtualidade. Tendo em conta que as perspectivas pós-modernistas fundadas na década de 70 do século passado ainda não se instituíram como as paradigmáticas das sociedades ocidentais, apesar de questões como a do relativismo (em termos culturais por exemplo) serem cada vez mais recorrentes, aparecem neste momento acopladas às noções mais ortodoxas do modernismo (existência de um padrão adequado, noção do progresso “para a frente”, etc.). A questão da irrealidade/virtualidade acaba por ser uma pedra de toque nesta amálgama mais ou menos entrópica; se o modernismo [na ciência, política e sociologia] postula que “algo existe” e que “há um progresso linear” das coisas torna-se difícil encaixar a ideia da fabricação de realidades operada pelos meios de comunicação social e de realidades “paralelas” como as redes sociais da internet, fenómenos perfeitamente enquadráveis numa perspectiva mais pós-moderna da realidade humana, em que a construção subjectiva e relativa da realidade e a impossibilidade de alcançar uma postura de absoluta objectividade são questões fulcrais. A fruição destas duas mundivisões não é feita sem atritos daqueles que soltam faíscas, como é normal quando uma perspectiva já não é suficiente e a outra ainda não se afirmou totalmente.



3 comentários:

  1. Força e tensão são mesmo os tópicos de tudo que fazemos. São os conceitos base do trabalho desenvolvido, logo se no concerto conseguiste perceber isso, então é óptimo sinal!

    Por muito que a tecnologia altere a nossa forma de nos relacionarmos com os outros e com o mundo, a noção de "progresso" ainda não anulou aquilo que realmente somos, lá no fundo. Daí que seja natural que acabemos sempre por entrar nesse passado mítico, independentemente das regras que estipulamos e dos materiais que usamos.

    Bater num bidão é mesmo de Homem!

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  2. Parece-me que a força e a tensão são inerentes à vossa inter-acção e não propriamente um exercício dessas características. Ou seja, essa força e tensão não são demasiado explícitos ou a intenção principal – se assim fosse eu não vos ouvia!!! A força e a tensão são mais intrínsecas, características que surgem a partir do tom e da linguagem que vocês usam, e não tanto o destino/intenção do vosso trabalho. A ideia de processo, de algo que decorre parece-me igualmente central, algo sentido até a partir do nome dos discos: “Transmissions” não deixa de se referir a um processo, ao processo de transferência de informação, e “Soul cleansing” igualmente refere-se ao processo de transformação pessoal. Ainda por cima são processos “etéreos”, na medida em que, apesar dos resultados serem observáveis, o processo não o é. Ao mesmo tempo são processos abertos e multi-dimensionais: “transmissão” refere-se tanto à transmissão cósmica dos corpos celestes como à transmissão genética no interior de uma célula. Da mesma forma, "limpar a alma” é uma expressão que se pode referir a uma miríade de transformações pessoais… Ou seja, o que eu quero dizer é que a tensão que existe numa transmissão ou numa limpeza de alma se refere mais ao diferencial entre o ponto de partida e o de chegada – e principalmente porque, como naquela critica que me referiste, não há uma noção de qual o ponto de chegada. O que me leva à ideia de que a “força” tem muito a ver com a alienação que este processo causa – acabais por ser Sisifos* fechados num circuito sem saída, com a única solução de caminhar sem saber qual o destino final [ou com a noção de que esse destino é voltar ao início].
    * Sísifo é uma figura da mitologia Grega, condenado a desempenhar a mais inútil tarefa para todo o sempre, carregar uma pedra redonda por um morro acima apenas para a ver rolar morro abaixo e ter que a voltar a carregar.

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  3. Como é meu hábito, usei o termo hiper-realidade como meu, quando este já existe. Termo oriundo do pensamento pós-moderno que Jean Baudrillard define como "a simulação de algo que nunca existiu realmente". Eu usei-o para me referir a uma mistura da mentalidade modernista (ou estruturalista) com elementos pós-modernos. Depois de ler o "simulacros e simulação" do senhor B ainda volto ao tema :)

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